Juliana | Escrevivendo na Pandemia

Pandemia e prisões: reflexo do que somos por Juliana Borges

ILUSTRAÇÃO ROBINHO SANTANA 

Para alguns, as reflexões sobre o período de pandemia podem ser realizadas como em uma sopa. Para outros, as reflexões são sobre as implicações diretas em suas vidas, de aprofundamento de desigualdades. As pessoas em situação prisional estão nesse último espectro.

Em uma sociedade fundamentada na violência, no racismo, sexismo, lgbtfobia, classismo e punitivismo, o grupo dos indesejados se constitui pelos que serão chamados criminosos, por negros e indígenas, por mulheres livres, por mulheres e homens trans, por pobres. É por essa gama de grupos sociais que os corpos a serem marginalizados se constituem e que a sociedade, direta e indiretamente, fundamenta que sejam controlados, violentados e exterminados.

A situação dos presídios no Brasil é estarrecedora. Em Resolução com recomendações ao Sistema Prisional durante a pandemia, o Conselho Nacional de Justiça aludiu a decisão do Supremo Tribunal Federal que caracterizou o “estado inconstitucional de coisas” dos presídios brasileiros. Antes do início da pandemia, os presídios brasileiros já enfrentavam uma epidemia de tuberculose. Uma pessoa  presa tem 35 vezes mais chances de adquirir tuberculose do que a população em geral. A taxa de prevalência de HIV/Aids pode chegar a até quatro vezes mais entre a população prisional, se comparada a população geral.

O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura teve todos os seus peritos exonerados pela atual gestão do governo federal, em junho de 2019. Antes do desmantelamento deste importante instrumento de fiscalização, acompanhamento, diagnóstico e combate a violações de direitos, os peritos já haviam anunciado as péssimas condições dos presídios. Segundo os relatórios, a estrutura é totalmente precária, sem médicos e enfermarias na maioria das unidades prisionais. Na imensa maioria das vezes os tratamentos são paliativos, há falta de medicamentos, as pessoas em situação prisional convivem com esgotos abertos, sem abastecimento de água constante. Ou seja, todas essas condições precarizam e adoecem, como também aceleram enfermidades pré-existentes. Há mais presos morrendo de doenças tratáveis, como tuberculose, HIV/Aids, hanseníase e até de infecções de pele em decorrência de escabiose não tratada do que pela violência no interior dos presídios.

Os presídios brasileiros têm todas as condições para um espalhamento desenfreado de um vírus como o que acarreta a Covid-19. Enquanto víamos as principais orientações para evitar o contágio, as pessoas em situação prisional sabiam que sua situação seria diferente. Já de saída, a orientação pelo distanciamento social é impossível de ser efetivada em uma unidade prisional. O Brasil é o terceiro no ranking de nações que mais encarceram no mundo, com uma população em mais de 755 mil presos. Segundo último relatório do Departamento Penitenciário, 44% dos presos são jovens entre 18 e 29, 51% está preso por crimes contra o patrimônio (roubo, furto, por exemplo) – entre as mulheres, a tipificação se inverte, sendo 51% delas presas por crimes relacionados a drogas.

Em recente artigo que escrevi, apresentei o quão absurdo é o uso descontrolado da prisão preventiva, sendo mais de 30% das pessoas em situação prisional composta por presos provisórios. Mas, o cenário ganha contornos mais preocupantes.

Ao nos depararmos com os dados sobre o total de presos, percebemos uma disparidade étnico-racial em sua representação, sendo 58% deles negros. A maioria das pessoas que são julgadas em varas criminais são negras, enquanto que em juizados que analisam crimes considerados menos graves, a maioria observada é branca (57,6% e 52, 6%, respectivamente). A despeito da conclusão fácil, de que esses números reflitam uma maior incidência de crimes cometidos por pessoas negras, não há dados que comprovem isso. Aliás, os poucos dados sobre os perfis dos réus aponta que, em crimes como roubo e furto, por exemplo, em estados como São Paulo, a maioria é de réus brancos.

A lei no. 11343, conhecida como “lei de drogas”, é uma das principais responsáveis pelo aumento exponencial da população prisional brasileira. Em levantamento realizado pela Agência Pública, em 2017, observava-se que negros são mais condenados com menores quantidades de entorpecentes do que brancos. Para se ter uma ideia, 71% dos negros condenados por apreensão de maconha tinham, em média 145 gramas da substância; ao passo que 64% dos brancos condenados por apreensão de maconha portavam, em média, 1,14 quilo da mesma substância. Se, por um lado, a lei deixa de punir com prisão os considerados usuários, por outro o 2o parágrafo, do artigo 28, abre para interpretações que serão encobertas de subjetividades, já que estabelece que o juiz não analisa apenas a natureza e a quantidade da substância apreendida, mas também o local e as condições em que aconteceu a apreensão. Ora, se negros e negras compõe mais de 75% do contingente pobre brasileiro, morando em comunidades, em muitos locais, dominadas e disputadas pelo tráfico e milícias, isso abre muitas possibilidades interpretativas para considerar qualquer “indivíduo suspeito”. E em se constatando historicamente, seguindo a herança de teorias eugenistas, uma construção no imaginário, e nas formações das polícias, de que criminosos são pessoas negras e que comunidades são territórios “periculosos”, já vemos onde essa combinação irá desembocar. Para piorar, em 2019, tivemos a ampliação do Estado penal, com a aprovação de medidas que ampliam penas no conhecido “Pacote Anticrime”.

Esse grave problema de seletividade penal-racial não é uma novidade. Ela está, em verdade, enraizada na Justiça Criminal brasileira, que opera como um dos aparatos mais potentes para a manutenção das desigualdades baseadas em hierarquias raciais.

Os sistemas punitivos brasileiros sempre foram atravessados, constituídos pelo sistema de dominação colonial e racista. Seja pelas Ordenações Filipinas (século XVII), que consideravam pessoas negras 

escravizadas como mercadorias, seja pela primeira Lei Criminal (1830) que estabelecia diferenciação de pena para os considerados livres, negros libertos e escravizados. Pouco falamos disso, mas o Brasil já teve a pena de morte vigente e, em diversos casos relatados por historiadores, dificilmente havia comutação de pena para escravizados. Aliás, falamos muito do processo de segregação nos Estados Unidos, quanto tivemos, no Brasil, no século XIX, muitas cidades que impunham uma série de restrições de lugares e horários que pessoas negras poderiam frequentar.

A relação com a criminalização das drogas, notadamente de substâncias como a maconha, também deriva de uma construção política, com intentos de controle e extermínio racial. À época conhecida como “pito do pango” e por ser utilizada majoritariamente por negros, o discurso disseminado pelas elites brancas sobre a maconha era de ser uma substância potencializadora de uma suposta “natureza criminosa” dos negros, sem qualquer evidência científica, se não rompantes eugenistas das mentes supremacistas dos de então. Aliás, o Brasil foi protagonista de uma ação em conferência na Liga das Nações, em 1925, ao lado do Egito, para criminalizar a maconha. Em muitas cidades brasileiras, o uso, e não a venda, foi criminalizada por muito tempo. Em decreto de 1932 que se passou a criminalizar usuários e vendedores, e tornado lei em 1940.

Essas são questões que suscitam uma série de perguntas para nós, principalmente quando vemos que, com a possibilidade de comercialização pelo mercado branco, o discurso sobre a legalização da maconha vai ganhando espaços, principalmente nos Estados Unidos. Esse controle pelo mercado e lucro branco é visível quando uma série de legislações de estados americanos proíbem que egressos por tráfico possam participar do novo mercado de maconha que se abre, além de dificuldades para acessar linhas de crédito quando é possível, sem contar a infinidade de pessoas que seguem presas acusadas de tráfico e associação no país. Ou seja, legalização para quem? Esse é um debate que devemos fazer também.

Com a pandemia, ao contrário de realizar uma série de discussões no sentido de garantir o distanciamento social nas prisões, tivemos ações inversas em todos os estados ao decidirem, por exemplo, que os presos do regime semiaberto deveriam permanecer em regime fechado durante a pandemia. Ora, pessoas em semiaberto estão usufruindo de direitos seja por comportamento e por penas por delitos menos graves e poderiam continuar cumprindo pena em domiciliar ou em regime aberto. Vários estados brasileiros, como São Paulo, apresentaram aumento no número de prisões no período pandêmico, quando todos os organismos internacionais de saúde e de direitos humanos apontavam que a saída era pelo desencarceramento, inclusive nosso Conselho Nacional de Justiça. Visitas foram proibidas e familiares passaram a ter dificuldades para obter informações sobre seus parentes presos. E a preocupação aumenta porque são as famílias que garantem itens de higiene básica e alimentação para vários presos, já que o Estado deveria suprir essa série de produtos, mas não o faz. Então, como estão esses presos e presas?

Na resolução do Conselho Nacional de Justiça, nada de absurdo: a indicação para encaminhamento ao regime domiciliar ou aberto de pessoas presas e que estão no grupo de risco: idosos, gestantes e pessoas com morbidades pré-existentes. Além disso, sugeria-se que mulheres mães, com filhos de até 12 anos, também pudessem cumprir pena em regime domiciliar, já que esse já é um mecanismo previsto em lei. Em toda a recomendação, também ficava evidente que as decisões deveriam se atentar a presos que cometeram delitos sem violência. E o que essas pessoas apresentavam de perigo contra a vida para terem que continuar presas, com probabilidade maior de contágio nos presídios?

Em maio, diversas organizações de familiares e de direitos humanos denunciaram o fato de presos estarem escrevendo cartas de despedida aos seus familiares por estarem com medo de contraírem a Covid-19, diante das condições às quais sobrevivem. As informações são escassas sobre qual é de fato o contingente infectado, pouco se modificou na estrutura para garantir condições salubres aos presos. E um silêncio permanece sobre isso.

Acredito que esse silêncio que exercitamos cotidianamente sobre as prisões refletem o que somos como sociedade, ou seja, as prisões são o espelho que nos mostra o que realmente somos. Quando vejo muitas pessoas surpresas com a pouca importância sobre a vida e com o início de flexibilização, quando somos o país com mais registros de mortes diárias no mundo pelo novo coronavírus, me pergunto em que país viviam. Já somos um dos países mais perigosos do mundo, em que mais de 60 mil pessoas são assassinadas por ano, o país que mais mata mulheres trans, o país em que mais policiais morrem e matam e já não nos importamos. Um ponto de ligação tanto entre a maioria de presos, a maioria de assassinados e a maioria de mortos pela Covid-19: negros. E isso não é uma coincidência, isso não é obra do acaso. Mas parte de uma política de Estado de morte que é executada em diversas facetas todos os dias no país.

O descaso ao qual são tratadas as pessoas em situação prisional diz muito mais sobre nós do que sobre eles. Aponta para uma sociedade que é marcada pela violência, pelo racismo e que tem naturalizado esses processos. Mas, é sempre bom lembrar do escritor James Baldwin e do filósofo Frantz Fanon que diziam que o processo de desumanização do considerado outro e indesejado, tem o potencial destrutivo sobre o que aponta. Ou seja, a brutalização se espraia e corrompe a todos. Não há escapatória. A menos que resolvamos dar um basta em tudo isso e percebamos que só alcançaremos direitos, democracia e paz se todos nos percebermos em perspectivas válidas e como sujeitos nesse processo, se repactuarmos o que entendemos por cidadania, direitos e humanidade.

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