Arte Western: a representação do faroeste no cinema contemporâneo

A representação do faroeste no cinema vem de uma tradição norte-americana enraizada em produções dos anos 1950 e 1970 que privilegiaram o enfrentamento entre personagens principais masculinas, roteiros pautados em confrontos físicos, especialmente com armas de fogo, a criação e a reiteração de estereótipos de vilões e mocinhos, conceitos de virilidade e autoconfiança masculina e uma normalidade diante da vida pacata de pequenas vilas que, quando assaltadas ou saqueadas, ficam sem reação. Entretanto, a mostra Arte Western, realizada em janeiro de 2019 no Centro Cultural São Paulo, procura expor filmes do século XXI em que as representações costumeiras desse gênero são subvertidas e adaptadas para uma narrativa híbrida e com personagens mais complexos.

O contexto das histórias que envolvem esta temática costuma ser o do (“velho”) oeste dos Estados Unidos entre as décadas de 1860 e 1890, após a consolidação das ideias de “missão civilizadora do homem branco” embutidas no Destino Manifesto e as hostilidades, durante a Guerra de Secessão (1861-1865), entre o norte (União, liderada pelo presidente eleito em 1860, Abraham Lincoln, que defendia o fim da escravidão) e sul (Confederados, que defendiam a continuidade do regime escravista). O conflito terminou com a morte de cerca de 600 mil soldados, a vitória da União, um custo de 115 bilhões de dólares e a criação da 13ª emenda em 1864, que acabou – burocraticamente – com a escravidão no país, ainda que grupos tenham se utilizado da violência para defender a segregação racial no Sul com o passar dos anos, como os Cavaleiros da Camélia Branca e a Ku Klux Klan.

Se os primeiros filmes do gênero eram filmados em estúdio, aqueles que vieram posteriormente foram rodados nas próprias locações onde as narrativas se passam, delimitadas, no geral, pelas margens do rio Mississippi, em direção a oeste do território estadunidense – praticamente não aproveitado pela Inglaterra até o século XVIII, uma vez que esta centralizava suas relações, tanto com as colônias de povoamento (do Norte) quanto com as de exploração (do Sul), pelo leste, mais geograficamente próximo da metrópole. Como a expansão em direção ao oeste ocorreu depois, com a venda da Luisiana pela França aos Estados Unidos em 1803, a anexação do Texas em 1845, entre outras aquisições territoriais, no continente e em ilhas próximas, as narrativas se passam neste período de tempo (final do século XIX).

Por mais que existam controvérsias a respeito do início do Western, aquele que é tido como primeiro exemplar do gênero atende por O Grande Roubo do Trem (1903), tem aproximadamente dez minutos e pode ser encontrado facilmente no YouTube. Como revela o título, o curta-metragem conta uma história criminal centrada em dois homens que rendem o chefe da estação de trem, interrompem o transporte e roubam os passageiros, em sequências ainda em preto e branco, com cortes bruscos e filmagens em plano médio, que privilegiam o corpo inteiro dos atores e suas gestualidades exageradas, próximas a uma estética encontrada no teatro.

Alguns clássicos do gênero são Era Uma Vez no Oeste (1968) e a Trilogia dos Dólares, de Sergio Leone, formada pelos filmes: Por um Punhado de Dólares (1964), Por uns Dólares a Mais (1965) e Três Homens em Conflito (1966). Ainda que tenham sido lançados na mesma época, a recepção do público e da crítica variou bastante entre os filmes, considerados arrastados e longos demais, mas hoje tidos como exemplares máximos desse tipo de narrativa, tão importante na formação dos estereótipos e em técnicas de filmagens fora de estúdio, principalmente relacionada em planos abertos de grandes paisagens naturais.

A figura feminina, tratada geralmente como coadjuvante nas produções do gênero e reduzida à condição de esposa e companheira, acaba por habitar um dos extremos – dentro de casa ou em prostíbulos e saloons (bares típicos do Velho Oeste norte-americano no final do século XIX) –, sendo limitada ao papel de cuidar dos cowboys após as frequentes trocas de tiros ou servi-los sexualmente de forma a conferir histórias para que seu parceiro troque com seus amigos depois, independentemente de terem sido reais ou não. Com o tempo, porém, as personagens ganham nuances que acentuam a repressão psicológica construída nas mulheres ao longo da história até culminarem no sentimento de revolta, transformados na busca por justiça em personagens como Vienna, de Johnny Guitar (1954), Elise, de Alabama Monroe (2012) e Mildred, de Três Anúncios para um Crime (2017), entre outras.

Com o passar do tempo, certo desgaste do gênero Western mostrou-se inevitável, embora sucessos posteriores como Dança com Lobos (1990) e Imperdoável (1992), respectivamente dirigidos por Kevin Costner e Clint Eastwood, tenham atualizado as propostas do gênero, incluindo um olhar mais atento a outras culturas e experiências que não aquela do homem branco anglo-saxão. No longa de Costner, o protagonista acaba entrando em contato e se interessando pela cultura dos nativos que habitavam o oeste dos EUA; na obra de Eastwood a busca pelo assassino de uma prostituta cria tensões entre o xerife e pistoleiros da região, discutindo questões como a insegurança masculina e o alcoolismo. Posteriormente, Onde os Fracos Não têm Vez (2009) e A Qualquer Custo (2017) reúnem elencos de grandes atores em sequências que flutuam entre representantes da lei e aqueles que procuram infringi-la para se vingar de comportamentos discriminatórios e violentos do passado.

Com personagens esféricos e uma estética de contrastes entre um constante jogo de luz e sombra em tomadas muito abertas de paisagens, um ladrão procurado por vários caçadores de recompensas planeja seu próximo grande roubo em O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007), a produção mais antiga presente na mostra. O retrato da discriminação e da tirania exercidas sobre o “covarde” descrito pelo título transforma as quase três horas de filme em uma constante relação de aproximação e distanciamento do espectador com os dois protagonistas, que, apesar de carregarem traços de uma forte relação entre dominador e dominado, terminam, como o próprio título diz, por inverter seus papeis socialmente atribuídos, após uma série de eventos que revelam suas atitudes excessivas.

No século XXI, filmes como Alabama Monroe (2012) e Domando o Destino (2017), se distanciam dos embates entre vilão e mocinho para abordar, respectivamente, a desestruturação de uma família belga com reviravoltas, performances musicais e um enredo contado de forma não linear e um trágico acidente de equitação baseado em uma história real do próprio ator protagonista. Certamente, não são premissas esperadas por quem está acostumado a associar paisagens rurais norte-americanas a cenas de violência e enfrentamento entre grupos geográficos ou sociais diferentes. Somado a esse desvio em relação ao conteúdo, o tratamento técnico de ambas as obras é muito delicado, exigindo certa paciência e sensibilidade do espectador, seja pela calmaria presente no desenrolar das ações ou pela profundidade psicológica que as personagens exibem aos poucos nas duas produções.

No Brasil, um processo semelhante de dramatização e aprofundamento do gênero é observado em Boi Neon (2015) e Rifle (2016), que, mesmo com propostas distintas, abordam a coexistência da inércia e da ilegalidade na extensa zona rural brasileira e desmistificam certo imaginário envolvendo a região, que possui suas particularidades e diferenças em relação ao faroeste estadunidense. Enquanto o primeiro longa-metragem acompanha um vaqueiro de curral nordestino que sonha em trabalhar como estilista, com atuações sólidas e uma produção mais sofisticada, o segundo opta por se concentrar no embate pela posse de terra entre um rico proprietário e uma família moradora da zona rural gaúcha, com atuações de não atores e um tom de aridez e simplicidade mais latentes em sua produção.

Também podem ser percebidas algumas incorporações e transformações do gênero na televisão, mais especificamente em séries atuais de grande alcance popular como The Walking Dead (FOX), na qual um vice-xerife acorda de um coma e vai em busca de sua família após uma transformação no mundo onde vive – transformação esta que se aproxima de um apocalipse zumbi; ou mesmo séries mais prestigiadas pela crítica como Godless (Netflix), que trata da ausência de homens em uma pequena cidade, já que a maioria deles foi morta em uma explosão (e agora a cidade é composta majoritariamente por mulheres, crianças e idosos), e Westworld (HBO), que acompanha um parque de diversões no qual os clientes têm a permissão de fazer o que quiserem com robôs similares a humanos, em um contexto de faroeste também, que se mistura com os debates acerca dos direitos humanos, da moralidade e até mesmo da inteligência artificial.

Os debates e reflexões acerca de filmes de faroeste mostram que o gênero não se esgotou totalmente. Embora adaptações, reestruturações e uma maior complexidade nas relações entre as personagens sejam necessárias para conceder maior credibilidade e verossimilhança às narrativas, a discussão relacionada à desconstrução do comportamento de heróis, vilões e mocinhos procura fugir do maniqueísmo tradicional e questionar a nossa forma de, nos dias de hoje, lidar com a motivação, a realização e as consequências dos atos de violência em um contexto no qual a busca por justiça é essencial, uma vez que aquele que possui a arma – e, portanto, é tido como mais forte – costuma vencer.

 

+Para saber mais:

 

Sobre a durabilidade de filmes Western

 

Texto: João Vitor Guimarães
Ilustração: Beatriz Vecchia

*Publicado em 17 de janeiro de 2018

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